domingo, 27 de dezembro de 2009

ÉTICA NA FUNÇÃO PÚBLICA

Anexos

- Ética e Política, Uma Tragédia do Mundo Ético.

José Henrique Santos

Existe uma célebre conversação entre Napoleão e Goethe a respeito da tragédia da política. Napoleão observava ao grande poeta alemão que a política desempenha no mundo moderno o mesmo papel que a tragédia desempenhava no mundo clássico, antigo, no mundo grego particularmente. Ora, Napoleão sabia do que falava. De fato, quero ver se tomo ao pé da letra essa observação de que a tragédia sai do palco da representação e entra para o palco muito mais amplo da representação política do Estado moderno. Mas é preciso qualificar melhor essa observação.

Normalmente, quando falamos em tragédia, principalmente a grega, compreendemos que se trata da tragédia do destino e da necessidade. Procuro uma leitura diferente, uma leitura libertária da tragédia. Não se trata tanto da tragédia da necessidade nem da tragédia do destino, mas da tragédia da liberdade. O teatro grego, a meu ver, é o teatro da liberdade. Vou tentar, então, conciliar essa concepção do teatro da liberdade com a tragédia no mundo ético ou no mundo político.

Na Poética, Aristóteles faz uma distinção interessante entre três tipos de homem. Podemos imitar ou representar, como hoje diríamos, os homens tais como são. Temos aí um realismo. Descrevemos o que os homens fazem realmente. Mas podemos imitar os homens melhores do que são ou como aquilo que devem ser. E podemos também representar ou imitar os homens piores do que devem ser, ou seja, fazer uma caricatura.

A tragédia se ocuparia da representação dos homens, considerando-os melhores do que realmente são. E a comédia representaria os homens piores do que são, com seus vícios e deficiências, que merecem a censura. É um fato notável que a tragédia diga a respeito dos homens eminentes, aos príncipes, aos reis, aos heróis, porque encarnam um ideal de comportamento que vai se tornar padrão na educação grega. Na comédia, quando Aristófanes representa os homens pelo ridículo, exerce uma censura ou crítica social, sem dúvida uma crítica ética. Quanto aos trágicos gregos, apresentam os homens melhores do que realmente são, e as grandes personagens livres conseguem impor a sua liberdade diante de um destino extremamente cruel. Vou dar dois ou três exemplos, sem demorar muito, para esclarecer bem o que tenho em mente.

Vou começar por Ésquilo. Primeiramente, a Oréstia, em que temos três peças encadeadas. A primeira é Agamêmnon, a apresenta o grande chefe da esquadra e do exército grego, que faz o cerco de Tróia durante dez anos e volta para casa, onde ele é recebido com as devidas honras pela sua mulher, Clitemnestra. Ela estende o tapete vermelho em sua honra e, quando ele vai tomar banho, ela o envolve numa toalha e o mata a facadas. Ela já estava associada com Egisto e, com isso, vingar-se de um antigo crime perpetrado por Agamêmnon> Na verdade, quando este assumiu o comando do exército grego para a expedição de Tróia, não havia vento capaz de impelir os barcos a vela.

Consultado o Oráculo, este diz que era necessário sacrificar a filha mais jovem de Agamêmnon, Ifigênia. Isso se fez mediante um engodo. Ele chama Ifigênia ao Porto de Áulis para dizer-lhe que ela iria se casar com o grande herói Aquiles, mas que não estava destinada ao casamento, e sim ao sacrifício. Quando Clitemnestra percebe o horror disso, jura vingança contra seu próprio marido. Dez anos depois, ao voltar da expedição vitorioso, Agamêmnon é assassinado.

A segunda peça é as Coéforas, ou seja, aquelas portadoras do sacrifício do alimento sagrado para os defuntos. Descreve como Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra, depois de banido, volta a sua cidade natal, encontra-se diante do túmulo do pai com sua irmã Electra, e ambos tramam a morte da mãe em vingança ao pai. As Erínias, as fúrias, os gênios vingativos dos crimes de sangue, exigem que o parricídio seja vingado. Então Orestes penetra no palácio disfarçado, dá-se a revelar à mãe e a mata. É uma cena belíssima, de muita intensidade trágica. A mãe vai fazer toda aquela súplica, dizendo do seio que o amamentou etc. Realmente ele mata a mãe.

Mais uma vez as Erínias, as divindades malfazejas, entram em cena, exigindo vingança do sangue. E agora exigem que Orestes seja punido pelo crime matricídio.
O que observamos até aqui é o seguinte. A história já vem de muito antes. Em Homero, podemos ter mais informações sobre os antecedentes. Essa sucessão de crimes de sangue vinha desde o tempo dos avós e bisavós das passagens. Pélops Atreu são dois irmãos que se desavém por causa de problemas de poder. Um convida o outro para jantar e serve como iguaria o filho deste, cozido. Há acerta tentação, por parte dos gregos, ao canibalismo, que é um pouco escondido, reprimido.

Mas, de qualquer forma, Egisto, que é descendente de um deles, jura vingança nos descendentes do outro. Por isso é que tenta seduzir justamente a mulher de Agamêmnon, Clitemnestra, e induzi-la a matar o marido. Desculpa: vingar o marido por ter entregado a filha, Ifigênia, para o sacrifício.

O que observamos é que a justiça, aqui, é a da vingança. É uma justiça primitiva: olho por olho, dente por dente, é a lei de Talião. É a justiça, mas é uma justiça que fica prisioneira do singular. E mais, ela muda de lado. Ela estava, por exemplo, do lado da Clitemnestra, que tinha sido ofendida com o assassinato da filha pelo próprio esposo. Quando Clitemnestra mata o esposo, a justiça muda de lado; está agora contra ela, que era a vítima e se torna a culpada. Quando Orestes mata a mãe, ele, que era a vítima por ter sido seu pai assassinado, agora vinga o pai e torna-se culpado. Portanto, isso não tem fim, é um mal infinito, é infindável o crime de vingança, o crime de sangue.

Podemos dizer duas coisas: em primeiro lugar, a justiça não tem equilíbrio, muda continuamente de lado, está sempre, provisoriamente, do lado do ofendido, que se torna imediatamente o ofensor, tão logo exerça a justiça. No mesmo momento que exerce a justiça de vingança, passa a ser culpado. Em segundo lugar, essa justiça é prisioneira do singular. A ação é sempre singular, é imposta pelo costume, pela crença religiosa, pela crença nas divindades infernais e vingativas, que são as Erínias. A justiça designa um indivíduo, no caso o filho, por exemplo, a quem incumbe de vingar o pai. Então, é como se esse costume tivesse o dom de transformar as pessoas boas imediatamente em más, no seu oposto. As pessoas más nunca se tornam, aqui, boas, porque, com a consumação do assassinato, não há mais reparação possível.

A terceira peça de trilogia, Eumênides, é bem interessante. Agora as Erínias, deusas infernais pedem a punição de Orestes pelo assassinato da mãe. Dizem que isso é insuportável, inadmissível, que alguém terá que vinga-la. Mas Apolo, que é uma divindade invocada por Orestes, pretende interceder por ele no tribunal dos deuses, e Atena, cujo nome romano é Minerva, toma interesse na causa e resolve persuadir essas Erínias, ou divindades do mal, a aceitarem julgamento pela corte de justiça do Areópago. Em vez de designarmos um indivíduo singular que vai vingar alguém e tornar-se um criminoso, que vai carregar em si a culpa, vamos realizar um julgamento com razões e contra-razões, com motivos avaliados racionalmente por um tribunal, e vamos respeitar a decisão desse tribunal. É exatamente isso que ocorre. As Erínias aceitam o julgamento, tornam-se plácidas e Eumênides, ou seja, de divindades más passam a ser divindades boas. Elas permitem, agora, instaurar um sistema em que a lei é universal e que, portanto, não diz mais respeito ao domínio do singular. O singular fica subsumido numa lei universal, eleva-se, portanto, a um nível universal. Quando isso ocorre, o tribunal vai julgar Orestes e aquela sucessão de crimes. Na violação final, há um empate, e Atena, ou Minerva, dá o voto a favor de Orestes, que é tornado livre. Apenas terá que fazer a expiação, um ritual religioso, mas torna-se livre. Aqui cessa a seqüência dos crimes de sangue e surge pela primeira vez no teatro grego, a representação da justiça como algo impessoal e universal. O individuo que é subsumido, é elevado ao nível da universalidade. Agora, não temos mais a vingança e o crime de sangue. Em vez da vingança, temos a pena, que não é uma vingança. Podemos dizer, utilizando uma expressão de Hegel na Filosofia do Direito, que o criminoso deseja a própria punição, porque saiu desse universal da lei, através da transgressão. Ele transgrediu uma lei universal e quer ser reintegrado na universalidade do homem. Tratam-se, para os gregos, de pensar os homens universais, os homens tais como devem ser e não como são realmente.

Os dois primeiros casos – os homens como devem ser e os homens como são realmente – podem ser objetos da tragédia. Quando são como são realmente, são bastante maus e servem tanto para a tragédia quanto para a comedia. No caso da comedia, temos uma espécie de dissolução de tudo que se poderia tomar como racional. Por exemplo, a religião politeísta grega termina dissolvendo-se na comédia. Os deuses são postos como objeto de riso. Podemos dizer que os deuses morrem, mas não morrem de tanto rir, morrem pelo ridículo. Só depois disso que o cristianismo começa a tomar a cena do mundo antigo, depois de a comédia cumprir a tarefa de dissolver a crença de deuses bastante inverossímeis e bem pouco divinos. Voltando ao caso da tragédia, o elemento que apuramos até aqui, na minha narrativa, em primeiro lugar, é o universal. A lei é universal, é a mesma para todos. Quando a lei pune, não exerce uma vingança, promulga uma pena, que é a reposição do criminoso na ordem universal por ela criada.

Então, aqui, temos essa idéia de instituição de justiça e retiramos a lei desse vaivém, dessa mudança de lado contínua, do que chamamos de “o mal infinito”, uma vingança que não tem fim. Temos que por fim a isso, elevando e mergulhando tudo no universal, ou seja, no homem universal, no homem tal como deve ser e não como é realmente. Ele é viciado, mau, pratica atos de insolência em relação aos deuses, atos criminosos em relação aos outros homens, mas agora estamos pensando não no homem real, mas num homem mais ideal do que real que é aquele que deve ter tal ou qual comportamento.

A segunda tragédia que referiu o autor é Antígona, de Sófocles, na qual temos uma situação interessante: o direito do Estado de manter-se e, portanto, exercer sua razão de Estado. Trata-se de um fato imemorial as razoes do Estado contra a substância ética. A história começa com dois irmãos, cidadãos de Tebas. Um deles, Polinice, retira-se de Tebas, alia-se com o inimigo e volta para usurpar o poder do irmão, Etéocles, rei de Tebas. Então, é Etéocles que se põe a frente do exército, que vai repelir o invasor, comandado pelo seu próprio irmão, e o destino quer que os dois se encontrem na mesma porta e que um mate o outro, na ferocidade do combate.

Então, o novo rei proíbe que Polinice, o traidor, seja enterrado. Seu cadáver vai ficar insepulto, pasto para os animais selvagens e as aves de rapina, que se alimentam de cadáveres, e isso, como uma regra que o Estado impõe a todo traidor, é uma razão do Estado. Acontece que uma irmã dos dois, Antígona, segue a lei do seu coração, a lei do lar, a lei dos ancestrais, que ordena que nenhum corpo seja deixado insepulto, que seja sepultado piedosamente. Ela, então, desafia a ordem do tirano Creonte e sepulta o irmão, sabendo que seria presa e emparedada viva. É exatamente isso que ocorre.

A tragédia é uma necessidade cega que se abate sobre as personagens, com uma violência muito forte. O grau de sofrimento que essa necessidade cega, que o destino impõe é muito alto para nós, homens. No entanto, um elemento para o qual gostaria de chamar a atenção não é a necessidade, mas a liberdade. É o elemento presente na consciência de Antígona, essa substância moral que lhe vem dos antepassados. Ela diz: “sei o que o destino fará comigo, o que me espera, mas desafio o destino e afirmo a minha liberdade”. Aqui representamos o homem como ele deve ser, isto é, livre.

Esse é o tom que desejaria enfatizar.

Como terceiro exemplo, volto a Ésquilo, na sua tragédia os Persas. Ésquilo foi combatente em Salamina, que impôs ao exército e a marinha persa uma derrota terrível. Ele, então, representa, na peça, a corte do rei Xerxes. A mãe de Xerxes, a rainha Apofa, tem pressentimentos estranhos. O rei Dario está morto, ela convoca seu espectro, mas ele não sabe de nada. Então chega um mensageiro e diz: “O exército, a fina flor de todos os habitantes da Pérsia, dos nobres, está perdido, eles estão mortos”. Ésquilo narra a história com maestria incrível, não existe nada supérfluo ou pitoresco, somente o essencial. O teatro grego não representa propriamente, pois é uma narrativa. O autor narra, com muita grandeza, o momento em que o rei Xerxes, assentado no trono, numa montanha perto de Salamina era muito raso, os gregos tinham barcos pequenos, mas com grande capacidade de manobra. Assim, causaram tal confusão que os barcos persas não conseguiram manobrar. Eles, então, puseram fogo nos barcos persas. Os guerreiros que se atiraram ao mar foram mortos a bordoadas com os cabos dos remos. O rei Xerxes rasga as roupas em sinal de desespero e luta, voltando, derrotado, para a Pérsia. Então, ele narra somente isso.
A pergunta que fica é por que um exército tão poderoso, tão glorioso, como o exército persa, perde para um exército muito inferior, que foi reunido às pressas para fazer frente a ele? A explicação é a de que os gregos defendiam a pátria, os túmulos dos antepassados, as esposas e os filhos, ou seja, cada soldado grego defendia a sua própria liberdade, ao passo que os soldados persas não defendiam nenhuma liberdade, pois defendiam unicamente seu senhor, o grande rei Xerxes.

Heródoto, que era também contemporâneo, nos oferece uma teoria sobre essa luta entre Europa e Ásia. A Europa vence por causa do principio da liberdade. Entre os persas, somente o rei era livre. Como todos eram escravos, ninguém lutava por si mesmo, mas por uma liberdade que estava longe, o rei. Os gregos como eram livres, lutavam por seu pedaço de terra, por si mesmo e por sua família.

Mais tarde, comentando este fato em sua História Universal, Hegel disse que entre orientais, somente um é livre, todos os outros são escravos. No mundo grego e no mundo romano, alguns são livres, alguns são escravos. No mundo germânico, que se iniciou com o império de Carlos Magno – não necessariamente o mundo alemão, mas o mundo de onde surgiu a Europa moderna – todos são livres enquanto homens, isto é, por essência. Como os persas desconheciam que não eram livres, não o eram. Como os gregos sabiam que eram livres, tornaram-se livres.

Então, quero agregar esse outro elemento, o saber, à idéia de liberdade, ou seja, saber-se ser livre. Ora, o estado de liberdade é aquele que se sabe a si mesmo. Como? Sabe-se livre. Isso permite deixar um pouco a questão do teatro da liberdade, pois os exemplos citados são suficientes para refletirmos um pouco sobre alguns conceitos ligados a essa questão. Em primeiro lugar, a distinção entre livre arbítrio e liberdade. O livre arbítrio é uma condição necessária para a liberdade, mas não é suficiente.

É preciso que a liberdade se dê leis. Quais leis? Leis universais, que dizem respeito a todos. Existem leis da liberdade. Montesquieu, no Espírito das leis diz: “ A liberdade, mesmo no estado moderno, não é a de cada um fazer o que bem entende, cada um fazer o que quer. A liberdade é cada um fazer o que deve”. O Estado é o lugar em que se encontram o éthos (costumes) e o crato (a força, o poder). Qual é o costume? Nesse estado imaginado e desenvolvido pelos gregos, o costume é a liberdade. Qual é a força? É a força de coagir, é a força que a liberdade deve ter, através do direito e da justiça, de se impor, porque ela é a expressão da própria razão. Não precisamos mencionar, ainda, os Estados democráticos, republicanos ou autoritários. Basta, por enquanto, falarmos sobre o Estado da razão, o Estado racional, que é o Estado ético. Por quê? É o lugar onde estar a nossa soberania, onde ela está representada, assimilada, organizada, desenvolvida e capaz de fazer prevalecer, se necessário, contra qualquer arbítrio e arbitrariedade. Uso os termos “arbítrio” e “arbitrariedade” num sentido muito próximo ao do chamado livre arbítrio. Gostaria de citar outro exemplo, usando ainda a tragédia os Persas, de Ésquilo. O rei Xerxes fez dois tipos ataques ao mundo grego, à Ática. O exército foi por terra, e a marinha, por mar. Como não podia navegar em alto-mar, a esquadra foi costeando. Assim, foi um ataque paralelo: o exército em terra e a esquadra perto da terra, pois nunca enfrentavam o alto-mar. Quando o exército chegou ao Helesponto, foi necessário construir uma ponte provisória de madeira, a fim de que os soldados pudessem atravessar com seus cavalos. No entanto, uma tempestade destruiu a ponte e boa parte do exército morreu afogada. O rei Xerxes ficou furioso e mandou açoitar o mar, como castigo, pois o mar ousou desobedecer ao seu desejo, à sua ordem.

Isso é arbitrariedade. O déspota tem o arbítrio, mas não tem a liberdade. Poderíamos fazer essa distinção. Ao se pensar na liberdade como um poder de mandar, é preciso acrescentar a legitimidade de poder mandar, para que aja legitimidade em obedecer. Liberdade inclui mandar e obedecer. Ora, o déspota é arbitrário, não se fundamenta em nenhuma lei da liberdade, em nenhuma lei universal, mas na sua vontade caprichosa, que muda a cada momento, de acordo coma simpatia da pessoa em questão.

Heródoto, grande ideólogo da liberdade grega, conta que, quando Xerxes decidiu convocar todos para guerra, um nobre, seu comensal, pediu que seu filho mais novo ficasse para cuidar dele em sua velhice. O rei, então, convidou para almoçar. No dia do almoço, o nobre, muito satisfeito, observou que somente ele comia, pois o rei não se alimentava. Então, terminado o banquete, o rei destampou o caldeirão e dele retirou a cabeça do filho mais novo do nobre, dizendo-lhe: “Você sabe, agora, qual foi o animal que acabou de comer. A comida foi boa?” O nobre seguindo a etiqueta da corte, respondeu apenas: “o que agrada ao meu rei agrada também a mim.” Heródoto conta esse fato mostrando exatamente o que é o arbítrio, o que é o mando de um só, que tem o arbítrio, mas não tem a liberdade. Aqui é o domínio do singular, do capricho. Ele não gostou que o outro tivesse pedido que o filho fosse poupado da guerra.

Voltamos, agora, à idéia da universalidade. Portanto, faço a distinção entre arbítrio e liberdade. Arbítrio é uma condição necessária, mas não é suficiente para a liberdade. É preciso organizar o arbítrio. Como disse Montesquieu, é preciso querer o que devo querer não o que me passa pela cabeça, pois isso é capricho. Essa universalidade, que venho descrevendo com tais exemplos, é chamada de universalidade nomotética. É uma universalidade da lei. No mundo grego, nem todos eram cidadãos. Em primeiro lugar, somente os homens, pois as mulheres constituíam uma civilização noturna. Os negócios do Estado ocorriam na praça pública, nas assembléias diurnas. As mulheres presidiam o lar, cuidavam das divindades domésticas noturnas. Geralmente, havia essa contraposição entre o aspecto noturno e o diurno. Os escravos também eram excluídos. Portanto, o número de cidadãos era restrito. Não obstante, os pensadores, filósofos, políticos e trágicos gregos foram capazes de colocar um ideal de justiça, de lei e de Estado. Um Estado como o lugar próprio do éthos, do comportamento. Qual comportamento? Não o comportamento real dos homens, mas aquele tal como deve ser. Alio a essa explicação a opinião de Montesquieu, isto é, a liberdade e o comportamento do homem tal como deve se comportar, não como ele quer se comportar. Isto é um desejo, mas devo contrariá-lo e, frequentemente, fazer coisas que não desejo. Isto é liberdade.

Satisfazer o desejo não é liberdade. Pelo contrário, frequentemente, liberdade é contrapor-se ao desejo. Essa universalidade é nomotética, porque põe imediatamente uma lei, a lei do grupo, da tradição. É uma substância ética que existe antes do nascimento das pessoas. No mundo grego, as pessoas eram educadas de acordo com tal lei, tanto que um pai pergunta a um filósofo pitagórico o que deve fazer para educar bem o seu filho. O filósofo responde que basta faze-lo cidadão de um Estado que tenha boas leis. O Estado é o lugar próprio da liberdade, mas a liberdade é aquela que se baseia na lei, na justiça, no universal, no dever, e não na vontade desregulada, desligada do dever e, menos ainda, no desejo ocasional e aleatório. Então, essa universalidade é nomotética. A isso damos o nome de totalidade grega, porque o indivíduo, por ser cidadão, é universal, Encontra no Estado a sua própria essência exposta diante dele, desenvolvida e organizada. Agora, não existem mais crimes de sangue, existe o tribunal e a lei. O Estado moderno coloca esa universalidade nomotética em crise.....

Quando a universalidade nomotética desaparece e é posta em seu lugar uma universalidade hipotética, já não há mais utopia de liberdade pela qual morrer, pela qual cumprir o dever.

Leônidas, por exemplo, vai defender o desfiladeiro das Termópilas contra o exército persa, que era muito superior. Assim ele o faz, Mas todos morrem. Então, os gregos escrevem, em uma placa, mais ou menos o seguinte: estrangeiros, ide dizer às outras pessoas que aqui morreram Leônidas e outros companheiros, na defesa de sua terra, de sua pátria. Aqui há, portanto, a idéia de dever, da morte pelo dever. E essa morte recebe um prêmio: é lembrada na consciência dos concidadãos e passa a pertencer à memória dos mitos que serão narrados daí em diante. Então, tem um sentido, o qual faz\ parte da vida humana.

Há um escrito de Freud, se não me engano de 1923, chamado de Psicologia de Massas e Análise do Eu, que é um livro de Metapsicologia, onde ele aborda um problema muito interessante, que ilustra bem esse contexto. Ele se pergunta como podemos transformar uma multidão amorfa em uma coisa organizada, e, para explicar, toma os exemplos do exército e da Igreja. Qual é a finalidade do exército? É ser eficiente e matar o inimigo. Então, vamos fazer com que os soldados possam dizer “nós”, nosso batalhão, Aqui o “eu” é um “nós” mediante o pacto que todos fazem entre si de que vão atacar e matar o inimigo e se defender em conjunto. Então, essa universalidade do “nós” não é nomotética; é uma hipótese, para que o exército funcione bem. Ainda no caso do exército, temos o marechal, ou o general, que funciona como um grande pai. O exército tem uma hierarquia, pela qual flui o seu poder. Cada um recebe, digamos assim, a imagem de si mesmo posta nessa hierarquia: a pessoa se reconhece como soldado, como sargento ou capitão; se reconhece em tal tarefa, própria do soldado, ou em tal outra, própria do infante ou do cavalariano. De qualquer forma, as funções dos “eus” que constituem esse conjunto artificial – o nós de um batalhão – são postas também artificialmente.

A mesma coisa ocorre na igreja, diz Freud, tomando o exemplo da Igreja Católica, na qual os fieis se reúnem na fé em Cristo. Temos, então, os católicos e os pagãos, os fiéis e os infiéis, nós e os outros.

E nos tornamos fortes na medida em que combatemos os outros, os irreligiosos, os ateus, os de outro lugar, que não compartilham das mesmas verdades. Não vou nem evocar Voltaire, que brincava com isso, dizendo que os homens são tão estúpidos que se matam porque uns acham que devem adorar a mesma divindade voltada para Roma. Mas não é bem assim. O que ocorre aqui é que o poder de dizer “nós” se dá mediante um termo médio, que é a crença comum; é a eficácia da Igreja, que só se define como um grupo para os que são de dentro quando se afirma como grupo contra os que são de fora. Quem não estar comigo está contra mim e, portanto, é inimigo. Matemo-lo. E, para matar o inimigo, vale tudo: podemos queimá-lo na fogueira, ou fazer todas as atrocidades imagináveis. Lembraria aqui o processo de Giordano Bruno, que é muito interessante. Esse frade dominicano era muito atrevido e, por volta de 1600, passou defender a pluralidade dos mundos, o que criava um sério problema: será que, nesses outros mundos, terá havido a necessidade da redenção, da Paixão, da morte na cruz etc?

Eram questões muito chatas e difíceis de ser respondidas. Então, a Santa Inquisição conseguiu colocar as mãos nele, que foi chamado a abjurar. Recusou-se, e a Santa Inquisição promulgou um belo decreto: vai ser morto sem derramamento de sangue e com o menor sofrimento possível. Foi colocado na fogueira, sem derramamento de sangue, e o sofrimento de ser queimado vivo, obviamente, é muito menor do que o provocado pelas chamas do inferno. Mas temos aqui exatamente a idéia de intolerância ligada a este grupo artificial – no sentido de que não é um grupo que se reúna naturalmente. Depois que a Igreja se organiza como instituição, ele passa ser definido por meio de dogmas, de uma hierarquia, e mediante o fato de se colocar a favor de si mesmo, e, ao mesmo tempo, estar a favor dos de dentro e contra os de fora.

Claro que isso talvez valha para um período da Igreja, mas não necessariamente para todos os períodos. A idéia aqui, típica dos sistemas políticos modernos, é a seguinte: como é que os “eus” dispersos, os indivíduos dispersos formam ou podem formar um Estado? Que estado é resultante dessa formação, que não é mais aquela que vem da tradição mais antiga, da religião tradicional dos antepassados, mas que é posta por um pacto político? Entre 1801 e 1803, Hegel escreveu um livro sobre a constituição da Alemanha, no qual diz, claramente, o seguinte: para o Estado moderno, basta ter uma administração centralizada que inclua a justiça, o exército. E pronto. Temos aí a possibilidade de se formar um Estado visivelmente artificial. Ora, ninguém se encontra a si mesmo, na sua soberania, nesse Estado artificial. É preciso que um longo processo de educação política faça com que me reconheça como igual, como pertencente a este “nós” que pronunciamos no nosso Estado. E é um de “nós” muito diferente – assim como havia diferença quando os gregos diziam “nós”, homens, ou nòs, mulheres. Aqui também para “nós, vai haver a diferença de classe, de testamentos, de regimentos, de situações as mais diversas, subdivisões infinitas”.

Pois bem, apesar disso, ainda assim, o Estado moderno possuía a sua soberania. Essa soberania clássica do Estado vai dizer, mas uma vez, embora a maneira artificial, que o comportamento, o costume e a força estão juntos, que o comportamento, o costume e a força estão juntos. O poder do Estado é o poder, a força de organizar indivíduos dispersos, formando um “nós”, uma unidade. Essa unidade é diversificada, existem muitos sistemas de hierarquias dentro dela, mas os indivíduos podem fluir dentro dessa totalidade com o Estado, porque, por suposto, podem crer que o Estado represente sua soberania. É a idéia de Rousseau a respeito da soberania e da vontade geral. A vontade geral não é a vontade de cada um, como se eu saísse consultando: o que você quer? E você? Simplesmente, a vontade geral é a vontade de coexistência, de racionalidade, de liberdade, de tratamento, ao menos em princípio, igual e assim por diante. e a frente do exercito volta para usurpar o poder do irmão.

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